o dia em que vi 50 golfinhos

luiza brenner
7 min readAug 29, 2019

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(foto meramente ilustrativa de um bando de golfinhos cuja autoria não faço ideia)

A última vez em que eu vi um bando de golfinhos eu tive que fazer cocô em um saco de lixo — não necessariamente por uma relação de causa e efeito. Era um feriado prolongado e fui com cinco amigas passar uns dias em um barco, em uma baía perto de Paraty. Sol, bons drinques (músicas nem tanto — o hit era Creme do Verão), e tomatinhos cereja com mussarela de búfala, azeite e sal, porque a Tia Bia ensinou a Julia à receber muito bem.

Era uma segunda-feira, seis de setembro de dois mil e dez. O dia começou com um passeio de bote, vendo um sem fim de golfinhos dando show. Uns quarenta ou cinquenta deles, que pulavam, nadavam em volta da gente, jogavam água — aquelas coisas que golfinhos fazem. Mal sabíamos que meu personal show de horror estava para começar.

Vistos os cães marinhos, voltamos para o barco animadas e resolvemos, apesar do dia cinza e meio chuvoso, se exercitar. "Bora fazer wakeboard!", sugeriu Tatiana. Meu talento para os esportes é negativo, mas sabe-se-lá-porque-raios, no wake eu conseguia arranhar. Com o dia feio, o mar gelado, e minha preguiça tradicional, a Tati — que não é besta nem nada — insistiu para eu ir primeiro. Ela sabia que se ela fosse antes, eu provavelmente desistiria e ela ia passar frio sozinha. Pois bem. Falei que se eu não ficasse em pé na primeira tentativa, não ia mais. Meio mimada, meio mal-humorada, desde criancinha. A Julia no volante, as meninas no bote, eu na água gelada resmungando, subi. O bote indo, as ondas vindo, eu andando lá na minha por uns bons minutos, até que caí. E caí bonito. Caí com estilo. Caí de cara na água e, graças às minhas curtas pernas, meu joelho dobrou e a prancha bateu de quina na minha cabeça. Botei a mão instintivamente e senti a valeta que abriu, e meus dedos ficaram cheios de sangue. As meninas ainda nem tinham visto que eu tinha caído. Senta que lá vem história.

Comecei a gritar e acenar para elas voltarem rápido, porque sabia que era questão de segundos até eu desmaiar. Quando elas finalmente chegaram — e começaram a me zoar pela minha frescura de ficar gritando socorro, — falei que elas tinham pouco tempo porque eu ia apagar. Elas viram minha cabeça, panicaram, e me içaram para dentro do bote. Vai #girlpower! Desmaiei não sei por quanto tempo, e acordei com elas me colocando de volta no barco, branca. Aí o que eu lembro é um misto de putaquepariu com deusnosacuda. A Julia saiu de bote perguntando para todos os barcos que estavam lá se tinha algum médico. Nenhum médico. O marinheiro do barco estava tentando passar um rádio (não tinha sinal de celular) para ver se algum barco mais rápido podia me resgatar. A Lili ia e vinha, em pânico, e eu tentava de algum jeito falar para ela que tava tudo bem, para ela se acalmar. A Victoria ficou conversando comigo, e eu falei para ela que, não era para se assustar, mas que eu estava vendo uma luz. Ela começou a falar de vampiros para tentar disfarçar. A Priscila para lá e para cá, tentava ajudar quem precisava. E a Tati, pobre Tati, santa Tati, era encarregada de me limpar. Sabe quando a pessoa bate a cabeça e começa a vomitar? Pois é. Eu não vomitei, mas as tripas resolveram sair por outro lugar.

Não sei quanto tempo se passou, mas chegou uma lancha da Marinha Brasileira para me resgatar. Um tal de pega-qualquer-roupa e vamos-logo-para-o-hospital. Lancha da Marinha, vento na cara, barco chacoalhando, e eu com um pano na cabeça para estancar o sangue, um biquíni molhado, e uma cueca samba-canção.

Chegando em terra firme, a ambulância estava esperando. A ‘ambulância’ (aspas necessárias) era uma kombi velha, e o motorista falou para eu deitar. Vi aquela maca de massagem no porta-malas (sem nem um papel toalha para disfarçar), e com um corte aberto na cabeça, achei que não valia a pena arriscar. Chegamos na UPA de Paraty. Segunda-feira de feriado prolongado, o único médico disponível era um colombiano, com a camisa aberta, a correntinha de ouro no pescoço e exalando cheiro de cerveja. Cavalo dado não se olha os dentes, né? Na hora de costurar a cabeça, a Victoria veio dar a mão e acompanhar. Ela durou alguns minutos, ficou branca, e precisou gentilmente se retirar. O médico falava portunhol, a enfermeira me pedia para traduzir, e acabou que saí da sala com uma parte do cabelo raspado e uma gaze costurada em forma de lacinho. Anestesia? Estava em falta.

Enquanto isso, corta para a Julia ligando para o meu pai — que estava jantando com amigos, logo ali, em Portugal:

– Oooi, tio Dudu [com voz fofa]! Tudo bem?
– O que aconteceu, Julia?
– Então…. A Luiza caiu de wakeboard e
– Deixa eu falar com ela!
– Então… Ela não tá podendo falar…

Caos instaurado. Pai judeu à distância, acionou deus e o mundo, e conseguiu um helicóptero para me levar para o hospital, em São Paulo. Plot-twist: o helicóptero só podia sair de Angra dos Reis. Eu, Julia e Tati entramos num táxi (não sei que horas eram, mas já estava escuro lá fora) saindo de Paraty em direção ao Iate Clube de Angra. Conversa vai, conversa vem, para tentar manter a prejudicada aqui acordada (reza a lenda que quando você bate a cabeça não pode dormir), e o taxista simpaticão achou que era por bem contar que ele era ex-presidiário. Tinha saído há algumas semanas. Três meninas de biquíni, sozinhas, à noite, num carro com alguém que cometeu sabe-se-lá-qual-crime, e uma delas não-muito-consciente. Beleza, tranquilo, vamos lá.

70 km depois, chegamos. Sentamos no restaurante da sede, as duas muy amigas pediram um x-filé, e eu olhando passando vontade. (Reza a lenda que quando você bate a cabeça não pode comer). Foi só depois de ir ao banheiro e me ver no espelho pela primeira vez desde o tombo que entendi porque as peruas que chegavam para jantar me olhavam esquisito. A adrenalina foi tanta que nenhuma das duas pensou em me avisar que estava com sangue seco no rosto. Sim, eu estava ali sentada no restaurante, como se nada houvesse, com o cabelo de maluca com água do mar, sangue seco na cara, lacinho de gaze na cabeça, biquíni, e uma cueca samba canção. Claramente não era aquele o dress code do lugar.

Uma e pouco da manhã (doze horas depois de eu ter caído de cara na água), o helicóptero chegou. Na viagem de 80 minutos, no escuro, numa tempestade, eu falava que estava sentindo meu olho escorrer. Tá certo que eu tinha batido a cabeça, e elas achavam que eu estava é bem louca, mas fato é que eu só queria dormir — e sentia meu olho esquerdo escorrer.

Três horas da manhã, o helicóptero pousou no hospital — e eu morrendo de vergonha por chegar dando show, sem estar nem desmaiada. O plantonista pergunta o que aconteceu, a gente conta, e quando ele vê a minha cabeça pergunta, meio rindo meio tentando disfarçar, se ele podia chamar os colegas: “Em 20 anos de profissão, eu nunca vi uma coisa dessas!” Meu lacinho de gaze fez o maior sucesso naquela madrugada no P.A.

Feitos os devidos exames, volta o laudo da tomografia: fratura do assoalho órbita ocular esquerda. Sim, é possível quebrar o olho. E sim, ele estava de fato escorrendo: a meleca que fica embaixo do olho e faz ele poder se mexer estava escorrendo para dentro da fossa nasal (ou, pelo menos, acho que era isso o que estava acontecendo. Se você é médico e eu estou falando besteira, releve). Quatro horas da manhã, eu de biquíni e samba canção, e a recomendação do moço que estava lá era operar. Liga para o meu pai, em Portugal, de novo:

– Oooi, pai. Tá tudo bem sim. Chegamos. Fiz uma tomografia e o médico aqui tá falando que eu preciso operar.

Caos instaurado. Pai judeu à distância, pós-graduado em medicina improvisada parental, esbraveja: ‘Nem a pau. Espera eu voltar.’

Volto para casa, tomo banho, durmo, acordo, olho roxo, e na quarta-feira tenho a consulta pré-pai-aprovada-e-acompanhada com um cirurgião. Ele pergunta o que aconteceu, a gente conta, ele vê minha cabeça e meio rindo meio tentando disfarçar, faz alguma piada sobre meu laço de gaze. (Sim, a recomendação do primeiro plantonista engraçadinho foi não tirar para não correr o risco de infeccionar. Hoje, acho que foi só para me zuar). Ele explicou que fraturas desse tipo à vezes não precisam operar, que é tranquilo, que é super comum e tal. Olhou minha tomografia, pensou uns dois segundos, e mudou de ideia: ‘você tá livre amanhã?’

Botei uma placa para segurar meu olho, tirei os pontos (e o lacinho de gaze) da cabeça três dias depois, e sucesso! Mais ou menos um mês sem sentir um pedaço do meu rosto, alguns anos sem conseguir enxergar de muito perto (acende esse cigarro de palha para mim?), e nove anos depois, uma história meio incrível meio terrível para contar. Ah! Eu falei que vi cinquenta golfinhos?

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luiza brenner

mezzo português, mezzo inglês, mezzo gramaticalmente preguiçosa. sou mais legal desenhando.